Bem. O que eu posso dizer daquela noite? Não me recordo muito do ocorrido, apenas flashes iluminam minha mente de forma esporádica. Sinto que quanto mais tento me recordar, mais distante se encontram as lembranças.
Entretanto, existe algo que está presente em todas as minhas escassas memórias daquele cruel evento. Sempre que fecho meus olhos, consigo sentir o peculiar perfume das flores de cestrum, e por vez ou outra, se me focar atentamente no seu odor, quase posso sentir o gosto da morte, minha fiel companheira por mais de 700 anos.
Alguns podem dizer que estou equivocada, já que a maldição a qual fui exposta me colocou apenas em um sono profundo. Contudo, o que é estar totalmente desacordada, sem sonhos ou inquietações, durante um longo período de tempo?
Nenhuma brisa que passava pelo meu rosto foi sentida pela minha pele, a única sensação que não passava despercebida pelo meu ser, era a paz congelante do vazio que me inundava.
Quando abri os meus olhos para a vida novamente, não me encontrava na torre em que me aprisionaram, mas sim em uma espécie de sala de cura. Meus lábios não foram beijados por alguém que me amava.
Ao contrário de um doce beijo de amor, amargas agulhas estavam perfurando a minha carne próximas ao meu cotovelo, uma espécie de líquido azul era levado para as minhas veias.
Muitas pessoas vestidas de branco me olhavam com muita atenção, pude ver que algumas delas pareciam segurar a respiração, como se eu fosse um pavio de pólvora acesa, pronto para levar tudo aos ares.
Victor foi em minha direção é se apresentou:
– Olá, bem vinda de volta, Aurora! Meu nome é Victor, sou médico e o pesquisador chefe dessa instalação… – Antes que pudesse terminar sua fala, um curioso senhor de óculos espessos e cabelos brancos penteados para trás, o interrompeu.
– Não acredito que ela saiba o que seja um médico ou o significado de pesquisador chefe, meu amigo. – Vi um meio sorriso surgir no canto direito dos lábios de Victor, então ele balançou a cabeça de forma a concordar com o senhor.
Foi exatamente naquele momento que meus pensamentos começaram a funcionar com certa precisão, até então, tudo aquilo me parecia um exótico sonho.
Notei estar completamente nua dentro de um caixão de vidro. Naquele momento, me senti como uma das preciosas adagas de meu pai, em exposição na sua sala de guerra.
Tentei me encolher para recuperar um pouco da minha dignidade. Mas, o caixão de vidro era estreito, não permitindo fazer muitos movimentos.
– Saiam todos! – Ordenou Victor ao perceber o meu desconforto com aquela situação. De repente, a sala que estava cheia ficou consideravelmente vazia.
Victor levou o senhor de óculos espesso até a porta. – Calma Antony, você terá a sua chance, eu prometo, agora de um tempo para ela!
Assim que fechou a porta, caminhou calmamente em minha direção, arrastou a cadeira que estava próxima ao meu caixão de vidro e colocou a mão próxima ao meu rosto, de forma espalmada sobre a superfície.
– Depois de tantos anos de pesquisa e testes finalmente consegui, finalmente você está acordada! – Sussurrou baixinho, como se estivesse falando consigo mesmo.
– Onde estou e quem são vocês? – As minhas primeiras palavras, depois de tanto tempo calada. Elas saltaram da minha boca e senti cócegas em minha garganta.
– Tá bom, vamos com calma! As informações que tenho para te passar podem te deixar em estado de choque. – Enquanto Victor procurava pelas palavras certas, busquei me adiantar, não havia mais tempo a perder.
– Estou no futuro? Quem me beijou? – Perguntei olhando fixamente em seus olhos.
– Meu Deus, você é muito direta! – O homem respirou profundamente antes de prosseguir. – Você está correta, esse é o futuro, mas ninguém te beijou como era exigido na lenda. Alguns até quiseram tentar, mas não permitimos tamanha ousadia – Tentou parecer bem humorado, mas não conseguiu arrancar nem um meio sorriso de mim.
– E como eu estou acordada se a maldição não foi quebrada? – Estava confusa, Malévola me condenou a ter esperanças somente em um beijo de amor verdadeiro.
– Após muita pesquisa, testes e estudos, conseguimos encontrar o que te mantinha em seu estado vegetativo. Desde que detectamos que o seu problema estava relacionado ao seu sangue, até esse exato momento em que te acordamos, passou 5 anos.
– Então todos que eu conheço estão mortos? – Não pude esconder as lágrimas em meu rosto. Victor me olhava com compaixão.
– Eu sinto muito! – Disse o homem tentando desviar o olhar. Notei que a minha tristeza parecia o incomodar.
– Não tenho razões para continuar viva, tudo que me movia foi tirado cruelmente de mim! – Limpei as lágrimas em meu rosto com as costas de minhas mãos.
– Não diga isso Aurora, você ainda tem família aqui, ele irá cuidar de você, o Antony cuidará muito bem de você!
– Antony? O senhor com os óculos espesso? – Perguntei impaciente.
– Sim. O Bisavô de Anthony era um historiador muito competente. Ele descobriu a sua lenda na linhagem da família e decidiu procurar por você. Achava que tinha sido envenenada e que encontraria o seu corpo em alguma escavação. Imagina a surpresa que teve ao encontrá-la viva.
Victor explicou que Antony nunca se casou ou teve filhos, ele dedicou toda a sua vida a me acordar.
– Ele é um bom homem, enquanto você dormia, ele lia todos os dias para você.
– Você não está mentindo para mim, está? – Após aquela revelação, finalmente um pouco de conforto se assentou em meu coração. Não estava desamparada como imaginei estar.
– Não preciso mentir para você, e nem quero mentir. A partir de hoje teremos uma relação de proximidade muito forte, você será uma estrela, todos irão querer saber a sua história e como nós te acordamos.
– Estrela? O que isso quer dizer?
– Quer dizer que você é uma mulher famosa, todos torcem pelo seu retorno. – Victor me contou que existiam livros sobre a minha existência e que eram chamados de contos de fadas.
Aparentemente, os contos de fadas não narram toda a verdade por trás da lenda. Nos livros, Aurora é uma bela princesa indefesa que caiu nas mãos de uma terrível bruxa.
Tive vontade de rir, gargalhar com todas aquelas falsas informações a meu respeito. Pensei em me vangloriar de ser uma das mulheres mais perversas que já pisou no mundo. Porém, acabei pensando melhor, essa era a minha grande chance!
– Me tire daqui lorde pesquisador! – Ordenei como fazia com os meus criados do castelo. Para a minha surpresa, não funcionou como deveria, e naquele momento soube que não éramos mais a realeza.
– Descanse um pouco, amanhã faremos mais exames e então você irá para casa! – Victor sorriu tentando me animar. A ideia de passar mais um minuto sequer presa naquele caixão de vidro era inaceitável.
Pensei em entrar na sua mente, fazer com que ele obedecesse às minhas vontades. Mas, me recordei que foi por usar os meus poderes que me encontrava naquela situação.
Poderia me fingir de uma boa garota como costumava fazer em casa, mas não sabia se iria funcionar como funcionava com a minha família e o povo do vilarejo.
Eles demoraram anos para descobrirem que toda a desolação que rondava a nossa existência não vinha de Malévola.
Podre tola, ao tentar me matar em meu berço, após uma visão sobre quem eu seria, foi banida e caçada por anos e anos, ate que finalmente voltou para me prender dentro do meu próprio corpo. Agora olha onde estou, em um mundo novo que me idolatra!
Notei que Victor se esforçava ao máximo para não encarar meu corpo, então me posicionei de forma a deixar meus seios mais amostra.
– Por favor, eu imploro! Não me deixe dentro dessa caixa de vidro, eu já fiquei presa por muito tempo, não suportaria passar mais uma noite assim. – O pesquisador olhou brevemente para eles, antes de soltar a sua resposta definitiva.
– Bom, todos os exames necessários já foram feitos durante todos esses anos em que esteve aqui dormindo. Você não poderá ir para casa nesse exato momento, mas acredito que posso te tirar de dentro da câmara de contenção, não vejo o que de mal poderia nos acontecer.
Não era exatamente o que eu queria escutar, mas sem utilizar o meu poder, apenas fazendo uso da minha beleza, já era alguma coisa.
Victor me levou para um quarto amplo, estávamos em um prédio mil vezes mais alto que a minha torre. Através do vidro da grande janela pude ver que milhares de construções semelhantes àquela se estendiam por todo o horizonte.
– Chicago! – Ele exclamou com um certo orgulho, orgulho de quem falava o nome do seu lar.
No dia seguinte, me furaram mais algumas vezes. Contudo, não me importava. Se aquele era o preço da minha liberdade, estava disposta a pagá-lo sorrindo. Lá fora havia um mundo inteiro à minha espera. Não via a hora de colocá-lo aos meus pés.
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