(Inspirado no conto “A bela adormecida”)
O sétimo dia
Eu não era um homem de superstições. Nada disso! Era um homem da ciência, e como bom arqueólogo sabia que aquela situação certamente tinha uma explicação lógica. Era o que pensava enquanto percorria a sala de minha casa, analisando o caixão de vidro em que uma bela garota repousava adormecida.
Sete dias após encontrar o corpo – se assim podia ser chamado o estado de alguém que apenas dorme um sono profundo -, havia descoberto pequenos detalhes entalhados na madeira que formava a base do invólucro.
O primeiro deles, julguei ser o nome da garota: Aurora. Era um nome lindo, com toda a certeza, e combinava com sua pele branca, cabelos longos loiros e lábios rosados.
Nossa, ela parecia até de porcelana! Uma bonequinha criada para se parecer com uma garota de 15 ou 16 anos.
Mas eu estava divagando novamente.
Balancei a cabeça tentando voltar para os detalhes descobertos. Assim, o outro detalhe era um entalhe com a palavra exponentia, que em latim podia ser lida como feitiço ou maldição.
Arrumei o jaleco no corpo, levantando do local próximo a inscrição e sentando no sofá que repousava próximo dali. A sala estava completamente estranha. As longas cortinas de veludo escondendo as janelas da vista curiosa dos vizinhos.
Os móveis tradicionais, como a TV, o sofá e algumas poltronas, estavam afastados para os cantos das paredes e davam espaço para que o caixão, de quase três metros de altura, repousasse no centro do lugar. Além disso, o tapete vermelho sangue que ganhei de minha esposa ressaltava o rosado do vestido da princesa.
Princesa? Pensei, retirando os cotovelos das pernas e indo novamente até a garota. Aquela palavra parecia engraçada para o ano de 2022. Mas, eu não sabia como, rondava a minha cabeça desde o dia anterior.
A caixa de vidro era quadrada e muito translúcida, de forma que tornava fácil observar as feições da garota, que vestia roupas em perfeito estado, calçava sapatos de cristal e tinha as bochechas coradas. Atravessei o cômodo a contragosto e peguei meu caderninho de anotações.
No topo da última página escrita, havia o novo número de telefone de minha esposa. Ela devia estar uma fera pois a mais de dois dias eu não ligava.
Coloquei os óculos, perfeitos para um homem de quarenta anos com certo grau de astigmatismo, e disquei os números no celular. Uma voz áspera atendeu do outro lado.
“Felipe, por que você não me ligou? ” Flora questionou preocupada.
“Eu fiquei ocupado aqui, descobrindo mais pistas”. Fiz questão de transparecer meu arrependimento. Mas não tive sucesso.
“Você já tirou essa menina dai? A levou para o laboratório?”
Aquelas perguntas destravaram as lembranças de nossa briga, quando cheguei com Aurora em casa. Eu certamente devia ter avisado uma autoridade científica, levado-a para o hospital ou, até mesmo, para meu laboratório. Mas, simplesmente não conseguia realizar nenhuma dessas ações.
Após inventar desculpas, desliguei o celular e fui até o quarto decidido a pedir ajuda. Afinal de contas, eu conhecia um médico renomado que faria todos os exames necessários em Aurora e não fazia sentido algum deixá-la na sala de minha casa.
De roupa lavada e cabelo arrumado, cheguei novamente à sala às 21 horas. O peito de Aurora subia e descia em seu sono tranquilo. As roupas que ela usava eram bordadas com flores lindas e o decote evidenciava uma pequena tarja de pele imaculada.
Coloquei as chaves do carro na poltrona mais próxima e observei com atenção um detalhe que passou despercebido. No seu seio direito, havia uma pequena pinta. Era de uma cor marrom clara muito suave. Ela parecia repousar no lugar certo e combinar com todo o resto. Até mesmo com o queixo arredondado da linda garota. Os seios dela, observei admirado, eram fartos para seu corpo esguio, e, de certo ângulo, podiam ser vistos com mais facilidade. Assim, fui parar atrás da cabeça da moça e encarei a abertura do decote.
Não demorou muito para que me levantasse atordoado.
O que estava fazendo?
Olhei no relógio de pulso: meia noite.
Meus olhos se arregalaram. O objeto só podia estar quebrado. Porém, antes de verificar qualquer fato, fui tomado por um sono e cansaço sem igual. Atravessei o cômodo e me deitei no sofá, no dia seguinte eu iria levar a garota misteriosa aos órgãos competentes o mais rápido possível.
O oitavo dia
Acho que dormi profundamente. Isso podia facilmente ser identificado nas dores que meu corpo adquiriu por repousar naquele sofá. As cortinas continuavam fechadas, o que não me deixava ter noção da hora. Verifiquei o relógio de pulso que marcava 19:00 em ponto.
Levantei rapidamente e olhei para o caixão de vidro no centro da sala. Aurora continuava em seu sono silencioso, o peito ainda descia e subia numa calma ritmada.
Nossa, ela era inacreditavelmente linda! Bela e adormecida em sonhos.
Tentei me concentrar e fui até a porta de entrada. Olhei incrédulo para as luzes dos postes iluminando as ruas do condomínio, que jazia sob a escuridão da noite.
Meu Deus, quanto tempo eu dormi? Tirei o celular do bolso e percebi que haviam diversas mensagens de minha esposa e que aquele era o oitavo dia da presença de Aurora em minha casa.
Esses oito dias haviam servido para me mostrar que ela realmente não acordava. Tive certeza ao passar os primeiros seis dias acordado. Uma pontada de dor me lembrou que eu não havia comido absolutamente nada.
Quando comi pela última vez? Eu também não me lembrava!
Tentei ler as mensagens de Flora, mas o celular desligou de vez.
Inseri o carregador no aparelho e fui até a cozinha. Na geladeira, encontrei a foto que minha equipe tirou no local de encontro da moça. Estávamos escavando aquela região do México há anos e, finalmente, encontramos vestígios de uma parede.
Daí até o encontro do caixão de Aurora foram apenas seis meses. Que surpresa os quatro homens tiveram ao ver que se tratava do corpo de uma garota viva.
Peguei a foto de nós cinco, pensativo, e fui caminhando até a sala com ela na mão. Minha memória parecia um pouco confusa, enquanto tentava me lembrar quando os meus parceiros de escavação teriam vindo visitar o artefato que depositamos na sala de casa.
Mas eles nunca tinham vindo!
Por quê? Por que nunca vieram vê-la?
Cocei a cabeça me sentando na poltrona próxima ao rosto de Aurora. Uma princesa de fato. Suas roupas pareciam medievais, e remontavam a uma época de castelos e guerras homéricas. Enquanto observava os finos pelos loiros em seu braço, pensava no porque alguém enterraria um ser tão perfeito embaixo de camadas e camadas de terra.
Desci os olhos para a palavra maldição, entalhada na base. Os povos antigos eram tão supersticiosos e estúpidos. Com certeza, achavam que Aurora era uma bruxa ou algum tipo de mau encarnado. Mas, como poderia?
Voltei os olhos para suas feições. Os lábios estavam levemente entreabertos. Eram volumosos e avermelhados. Como se certa quantidade de sangue aquecesse aquela região sedosa da pele.
Involuntariamente, passei a língua sobre os lábios enquanto minha mente lutava com a vontade de beijá-la ardentemente.
Senti meu corpo ser levantado, como se uma força invisível me sustentasse. Fui até o caixão de vidro e, pela primeira vez, ergui sua tampa. Ele era absurdamente pesado, mas não me detive, realizando um esforço surreal para jogá-lo do outro lado da sala.
O vidro se estilhaçou em diversas partes. Mas eu não liguei nem para o barulho, nem para o sangue que escorria por minha testa e descia pela bochecha em finas linhas.
Com toda certeza um caco de vidro havia chegado até mim, mas não dei a mínima importância.
Um cheiro de rosas e mel invadiu as minhas narinas, tomando conta de todo o ambiente. Uma onda de calor invadiu meu corpo quando me aproximei da face descoberta da garota, e toquei sua bochecha passando o polegar por seus lábios.
Do interior da boca de Aurora pude sentir um suave hálito frutado. Era como uma espécie de veneno que filtrava meu pensamentos e, em meu cérebro, comecei a ouvir uma súplica:
‘Me beije, me beije, me beije”
Por fim, ainda sem ter controle sobre minhas ações, deitei por cima do corpo da garota sentindo-o em minha pele. Ela era tão magra e pequena. Percorri suas pernas por baixo do vestido, sentindo o tecido fino da meia calça e o calor incendiou meu corpo, fazendo com que meu sexo ficasse rígido e suplicante.
Finalmente eu poderia beijá-la. FINALMENTE!
Pousei os lábios sobre os dela e saboreei cada toque, textura e calor que eles traziam.
A beijei intensamente por alguns segundos. Então, pouco a pouco, tomei coragem para abrir os laços do vestido e despi-la-lentamente. Passei os lábios por seus seios, e era como imaginei. As auréolas estavam endurecidas com o frio da noite, e suguei-as enquanto a penetrava com urgência.
Aurora não emitia sons e parecia mais quieta que o normal. Tentei parar. Tentei sair de cima dela e verificar a sua pulsação, mas não podia. Não queria.
Quando voltei novamente a encarar o rosto da garota, encontrei seus olhos abertos. Levei um susto tão grande que senti meu corpo se retesar e congelar rapidamente.
Fiquei imóvel contra ela, observando suas íris vermelho sangue tornarem o seu rosto, até então angelical, uma feição perversa e macabra.
Um urro animal saiu de dentro da garganta da garota e tomou conta de minha alma. Mas eu ainda não podia me mexer, ainda não conseguia reagir. Somente quando um golpe foi desferido contra meu pescoço, fazendo o sangue jorrar sobre o rosto da mulher macabra, saí do estado de congelamento e joguei meu corpo para longe, parando próximo a uma poltrona florida. Minhas mãos agarravam o corte profundo tentando evitar que o sangue saísse incessantemente, mas era inútil.
Minha visão embaçada observava enquanto, lentamente, Aurora levantava do caixão, seu corpo estalando e lutando para se manter de pé. Quando ela finalmente me encarou, o pedaço de vidro que usara para me atacar ainda estava em sua mão. Apenas nesse momento, numa espécie de permissão bizarra, deslizei para as sombras profundas, perdendo-me no vazio para sempre.
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